Sobre protestos e transportes coletivos
Protestos contra tarifas de ônibus em cidades brasileiras dividem opiniões, expõem a precariedade do transporte público e não são devidamente avaliados por grande parte da sociedade.
Na semana passada, jornais impressos, revistas e Internet estamparam em suas capas as manifestações populares que vêm ocorrendo na Turquia, desde o final do mês passado. A manifestação, que se iniciou de maneira pacífica, é contra a demolição do Parque Gezi, em Istambul, em cujo espaço o governo pretende construir um centro comercial. Os manifestantes armaram tendas e dormiram no parque; foram expulsos pela polícia com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. O que era pacífico tornou-se violento. O que era local, espalhou-se pelo país inteiro; aos protestos contra a demolição do parque juntam-se, agora, clamores para que o primeiro-ministro Recep Erdogan, renuncie. Até semana que passou, centenas estavam presos, milhares ficaram feridos e pelo menos quatro pessoas morreram. Às diversas imagens de manifestantes turcos com camisetas amarradas no rosto, aos gritos e no meio do caos, acompanhavam legendas ou textos mencionando a brutalidade da polícia turca, a postura autoritária do governo e a denúncia do fundamentalismo religioso e da rapinagem de grupos econômicos atuantes por lá.
Na mesma semana passada, os mesmos meios de comunicação estamparam imagens semelhantes, só que de protestos em diversas cidades aqui do nosso Brasil. As diversas imagens de manifestantes brasileiros com camisetas amarradas no rosto eram acompanhadas de textos que davam destaque à baderna, à quebradeira, ao vandalismo – pois ônibus foram queimados, sacos de lixo usados como barricadas e “coquetéis molotov”, bancas de jornal depredadas e vitrines de lojas quebradas. Alguns programas de televisão faziam eco (ou provocavam ressonância) em parte da população, indicando que tais jovens eram baderneiros, desocupados e vândalos, e suas reivindicações, segundo eles, eram nada mais do que tolice que atravanca, piora o trânsito e dificulta a vida de pessoas que só querem chegar em casa depois de um dia de trabalho duro.
Os protestos brasileiros: a bomba-relógio que teimam em esconder
Em São Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro, Aracaju e Porto Alegre, milhares de pessoas foram às ruas protestar contra o aumento das tarifas de ônibus. Com a chegada da polícia, as passeatas transformaram-se em confronto, com bombas de gás, cassetetes e balas de borracha contra paus e pedras. Há dois anos, em Teresina, tumultos ainda mais violentos conseguiram impedir o aumento nas passagens. Em Florianópolis, motoristas, cobradores e outros trabalhadores das empresas de ônibus entraram em greve por melhores salários e redução da jornada de trabalho. O mesmo tem ocorrido em cidades menores, como Blumenau, por exemplo, e o movimento dá indícios de que vai se espalhar ainda mais.
A maioria dos manifestantes, em todas as cidades, é formada por jovens, por estudantes e por pessoas que dependem fundamentalmente do transporte coletivo para circular pelas cidades. Toda essa situação escancara um problema urbano grave, que é a precariedade da infraestrutura de transportes em grande parte do país. Tal precariedade envolve tanto passagens caras em troco de um serviço ruim como a submissão do poder público diante das empresas concessionárias de ônibus e até o trânsito caótico – emperrado por veículos particulares, alternativa óbvia frente a ônibus caros, lotados e sucateados. Os protestos, portanto, não parecem ter ocorrido em função de uma tolice. A revolta sinaliza ser muito menos por causa de R$ 0,20 ou R$ 0,30 de aumento nas passagens, e muito mais em função da mobilidade cerceada por um serviço que deveria ser, por direito, bom e suficiente.
A se levar em conta esses argumentos, podemos supor que a causa, portanto, é legítima. Dessa forma, é intrigante notar a diferença de tratamento, especialmente por parte da grande imprensa do Brasil, entre protestos num país distante – a Turquia, citada no início deste texto – e no nosso próprio território. Quebradeira, feridos, danos ao patrimônio público: podemos pensar que é efeito colateral, comum a todas as revoltas que um dia sonharam transformar certas situações (incontáveis delas conseguiram) ou podemos pensar que não é assim que se protesta, há que exigir transformações de maneiras mais pacíficas. Podemos pensar que a quebradeira é fruto de alguns desocupados que teimam em tumultuar movimentos sérios e politizados ou podemos considerar que a violência que o Estado comete contra milhões de pessoas todos os dias é muito maior.
O que é, de fato, profundamente contraproducente e um desserviço para com toda a sociedade brasileira é reduzir manifestações populares como essa e diversas outras que estão a rebentar pelo Brasil a um mero quebra-quebra efetuado por vândalos.
A bomba-relógio, alimentada por ainda mais insatisfação que a gerada pela péssima qualidade dos transportes coletivos, está mais embaixo.