Vivissecção: entre a ciência e a crueldade
Dia 23 de agosto, em São Bernardo do Campo, São Paulo, entidades protetoras dos animais realizaram uma manifestação contra os maus-tratos aos animais usados em aulas de medicina: trajadas de preto para simbolizar luto, algumas pessoas carregaram faixas e cartazes com fotos de animais sendo maltratados. O Centro de Controle de Zoonoses da cidade envia cachorros toda semana para a Unidade de Experimento Cirúrgico da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo.
A fronteira tênue entre ciência e crueldade na rotina dos laboratórios e centros de ensino de ciências médicas e biológicas é uma questão muito polêmica.
Há algum tempo, manifestações desse tipo fizeram com que o curso de medicina da USP abolisse o sacrifício de cães em aulas sobre o efeito de drogas na função cardiorrespiratória, nas quais os estudantes testemunhavam os efeitos de várias substâncias sobre os batimentos cardíacos, e a Frequência respiratória. Agora, ao invés de presenciarem as reações no tórax aberto do animal, os alunos acompanharão uma simulação em computador.
Embora hoje, estime-se que 40 milhões de animais sejam sacrificados anualmente em nome da ciência, o combate ao uso de animais vem sendo crescente am todo o mundo no ensino, na pesquisa biomédica e testes de artigos de limpeza e cosméticos. Alan Goldberg, diretor do Centro de Alternativas para Testes em Animais da universidade americana John Hopkins,
afirma que desde 1976 o uso de animais usados em pesquisa biomédica caiu 15% no mundo todo. Tido como uma autoridade no assunto, ele trabalha na linha refinamento, redução e substituição de animais em ciências biomédicas e toxicologia através de atividades que incluem pesquisa in vitro.
A verdade é que essa discussão entre o mérito do uso de animais para se obter medicamentos ou produtos de uso seguro aos homens consegue, de longa data, contrapor dois grupos: os que buscam proteger o direito dos animais, e os que alegam ser seu uso necessário para o progresso da ciência. O primeiro grupo alega que as diferenças entre os organismos e reações bioquímicas de homens e animais não justifica o uso destes, e para tal argumento tem o exemplo do efeito carcinogênico do cigarro. Durante vários anos a ligação entre câncer e tabaco seguiu sob suspeita porque a doença não pôde ser reproduzida em animais, embora amplamente atestada por estudos epidemiológicos; a aspirina também é um bom exemplo: causa deformidades nas crias de roedores, cães, gatos e macacos, embora para nós seja segura.
O outro grupo, favorável ao uso de animais em estudos de medicina contesta essa ideia: Maria Helena Catelli de Carvalho, professora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, afirma: O projeto genoma mostrou que somos muito parecidos com ratos e camundongos ou seja, diferimos nos detalhes, mas somos parecidos o suficiente com animais para permitir paralelos. De acordo com a organização americana Fundação para a Pesquisa Médica, o salto da expectativa de vida, que foi de 47 anos, em 1900, para 75 anos, em 1985, nos EUA, deve-se às pesquisas com animais. Ou seja, os milhões de animais sacrificados seriam justificados pelo salvamento de milhões de vidas humanas.
Além disso, alega-se que as alternativas à vivissecção são úteis, mas continuam pobres perto da acurácia que há nos testes em organismos vivos, mesmo porque certas substâncias só podem ser estudadas em um organismo vivo.
Os antivivisseccionistas discordam. Eles duvidam da importância de vacinas, antibióticos e hipertensivos, substâncias de uso corrente na medicina ocidental. Alguns até indicam que 90% dos fatores que determinariam a longevidade de uma pessoa devem-se ao estilo de vida, ao meio ambiente e à hereditariedade. Só 10% dependeriam da assistência médica.
Esse é o tipo de discussão que não nos permite avistar um ponto de equilíbrio, pois mais que uma questão técnica de medicina, é uma questão ética.
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